brrr, uhh, shhhh
por João TerrasSe nenhuma pintura conclui a pintura, se mesmo nenhuma obra está absolutamente concluída, cada criação muda, altera, esclarece, confirma, exalta, recria ou cria de antemão todas as outras. Se as criações não são algo adquirido, não é apenas porque, como todas as coisas passam, é também porque têm quase toda a vida à sua frente.1
Merleau – Ponty
Será esse o ponto de partida para a mostra que aqui se estabelece, o alcance de obras que nunca absolutamente se concluem e que nos prometem ter quase toda a vida à sua frente. A série de trabalhos aqui apresentados alcança uma generosa parte do percurso de Francisco Venâncio (1990), a sua organização não segue nenhuma orientação cronológica e a mera similaridade de cores e formas, que por vezes possa sugerir linhas de continuidade entre os trabalhos, apenas é sinal de prova do estado inconclusivo, rebelde e potencial em que o artista se encontra. Percorrer cada traço, cada corpo, cada mancha, é percorrer o tempo delas, é entrar na mão e no braço do artista, é caminhar sobre a ideia, é a possibilidade aberta de nos libertarmos de qualquer premissa.
A fecundidade da Pintura
Os trabalhos de Francisco Venâncio operam numa lógica circular entre o Desenho e a Pintura, recolocam o observador no cerne dessa lógica convocando-lhes à premissa do equívoco num jogo de fusão onde o desenho se torna pintura e a pintura se metamorfoseia no desenho. Por extensão desta lógica, as formas, os espaços, os lugares e as referências encontradas em algumas das criações bidimensionais, parecem exteriorizar-se no corpo dos mais recentes objetos criados. Aqui o retorno circular do seu trabalho convoca novamente a nossa atenção. Precisando, a escala dos objetos que agora observamos existe dentro de uma outra lógica, uma lógica temporal. Primeiro, são matéria como referência para o lugar da Pintura, segundo como referência inversa naquilo que agora se tornam da Pintura ao objeto, e por último projetam-se permitindo-nos adivinhar o próximo passo. Ou seja, para além de nos possibilitarem tocar nas camadas do pensamento e criação do artista, toda esta lógica de recuos e avanços, de existência e de não-existência, de matéria e ideia, de visível e invisível, de acontecimento e projeção que subsiste na obra de Venâncio, confere-lhe um carácter fecundo, algo que emerge no lugar do silêncio, que se exalta na procura de um comunicar, que se consuma na forma de nunca se encerrar. O Pintor não fala sobre o mundo, não é da realidade a sua criação, não reclama a sua intenção, o Pintor oferece o seu corpo, silencia e por fim oferece-nos a possibilidade de existirmos num lugar algures entre este mundo e um outro.
A fecundidade das formas que o artista cria convoca-nos para o lugar de uma caligrafia que sufoca por se alcançar, a luta do lugar do signo que se não busca, se exalta. Se hoje carecemos de uma linguagem que nos salve da surdez, por erro ou sorte, a matéria que Venâncio nos permite será a de uma linguagem do infinito. É nos impossível não subjugarmos o olhar à forma, a jogos de procura, tentativas de encontro, caminhos de rememoração, porém estes desenhos, pinturas e objetos libertam-nos de qualquer surdez, permitem-nos viajar do significado ao significante sugerindo-nos a existência de narrativas que logo superamos por não terem continuidade, definem-se em ultima escala como imagens em potência para uma linguagem a imergir.
A par, existe uma espessura da escala do invisível, algo que premeia todas estas criações, seja na tela, no papel ou nos objetos, seja sobre a linha ou sobre a mancha. Uma espécie de gordura, de cera, de brilho, de vidro, algo no qual tudo parece ficar imerso, lento, congelado. Essa camada que vive algures entre a sombra e o silêncio, existe porque o trabalho de Venâncio se torna num arquivo do seu próprio trabalho. Com o mesmo ímpeto o artista cria, com o mesmo ímpeto abandona, se hoje inscreve amanhã apaga, se hoje lembra amanhã esquece. Um trabalho que continuamente se supera, seja na forma serial com que vai desenvolvendo o seu trabalho, seja no lento retomar da mesma peça, acrescentando-lhe camadas sobre camadas revertendo-lhe novas formas e realidades. Em último caso, podemos chegar a duvidar se este será afinal o estado final da Pintura, se o artista não se entregará mais uma vez, se não lhe ocorrerá mais uma mudança. Esta atitude torna-se libertadora, retira o peso claustrofóbico do objeto artístico encerrado, permite-nos aceder ao lugar do infinito de que a arte tanto necessita. Assim, esta repercussão encáustica da matéria, essa ideia que vai do criar ao apagar, do pintar e superar, posiciona o artista num lugar de potência diante de uma obra que aparenta ter temor do fim sem nunca se preocupar com isso.
A matriz do desenho
O desenho era em Lapa o alcance das palavras, em Ângelo de Sousa a raiz impermeável e autónoma das suas linguagens, e poderíamos continuar, o desenho existe no universo de todos seja nos lugares de pausa, seja no alcance da sua existência una. O desenho é coisa Vital, escrevia algures Nuno Faria, acrescentando ainda É necessário e é performativo, engendra e é engendrado pelo fazer. Situa-se num espaço intersticial, entre duas modalidades perceptivas, duas formas de decifrar o mundo: ver e ler. 2 Espaço de matriz, sulco da pulsão, lugar que surge na pausa do tempo do pensamento e nas basculações da criação, o Desenho é se não também o alfabeto de um lugar sem referência, e o trabalho de Venâncio circula nesse lugar, da pintura ao desenho e no seu reverso, onde a referência é rapidamente substituída por uma outra, criando sempre paisagens de uma outra realidade, matérias e formas que nos possibilitam a deslocação continua, irrecuperável e recorrente. A permanência e repetição de algumas formas, traços ou manchas, levam-nos a suspeitar da criação de signos e escritos de uma linguagem/comunicação concreta, mas rapidamente percebemos que esse retorno acontece para dar salto a uma nova forma, a uma nova língua, e a rememoração de formas são na verdade recuos de gestos ao seu imaginário. Assim as camadas que figuram em cada tela, pano, tecido, gesso, forma, objeto têm apenas a referência de um tempo. Um tempo de imediatismos que nunca se alcança. O tempo e o lugar de uma juventude, de uma sua juventude, que encontramos sempre presente no universo daqueles que mais se cansam.
Por fim, as obras de Venâncio existem no caminho e na prequela entre o desenho e a escrita, um processo de criação que caminha no lugar matricial da linguagem, na sua componente oral e performativa, constituindo no seu caso, lugares caligráficos, alfabetos impotentes e palavras do desvio. E não poderemos esquecer este lugar fantástico que o artista nos permite, esse lugar onde continuamos à procura da nossa realidade, da nossa escrita, dos nossos caracteres, das nossas referências, o lugar soberbo que nos oferece é o da constatação de signos gerados sobre o império de uma linguagem que nasce sem território, tempo e espaço e que por isso nos intriga e fascina, precisamente, por ser mais amplo que o conhecido.
Talvez por isso, o branco, o lugar do princípio, da luz, do silêncio, do começar e recomeçar.
O começo de um desenho, como o começo de uma pintura, tal como Llansol nos dizia com o começo de um livro, como acontecerá sempre com o começo de uma vida. Inesgotável lugar esse o do começar.O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo. Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. Basta esperar que a decisão da intimidade se pronuncie. Vou chamar-lhe fio _____ linha, confiança, crédito, tecido 3
Maria Gabriela Llansol
1 MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito, Vega, Publicação Passagens (2009), p. 74.2 FARIA, N. Composição do Ar; Energia e Forma. Publicações CIAJG (2012), p.140
3 LLANSOL, Maria Gabriela. O começo de um livro é precioso. Lisboa: Assírio & Alvim, (2003), p. 1.
Diálogo achado entre duas obras de Francisco Venâncio
por Hugo Miguel Santos
«Premier chapitre, continuer. Deuxième chapitre : commencer. L’ordre, qui étonne, fait presque toute l’idée. Continuer, c’est le seul moyen de changer.»
Alain, in ‘Minerve ou De la sagesse”
A: Repara.
B: Não. Esquece isso.
Apaga.
A: Então… volto ao princípio.
Apago.
B: Isso. Apara.
A: Apara-lápis.
B: Sim. Afia.
A: Afia-lápis.
B: Claro. Pega no lápis.
Afia.
A: Afio o lápis.
B: Não!
A: Não?
B: Esquece o lápis.
Pega no… Pega no Pincel.
A: Pego no pincel.
B: Hmmmm… não.
Esquece isso.
A: Então? Voltamos ao princípio?
B: Não. Esquece o princípio.
A: Porquê?
B: Esquece isso.
A: Mas repara! Estás a voltar ao princípio.
B: Não há princípio.
A: Não há?
B: Já não há.
A: Como assim “já não há”?
B: Repara, talvez tenha havido…
A: (Intromete-se) Talvez?
B: Talvez. Mas já não existe.
Já acabou.
A: Mas sendo assim… que sentido tem continuarmos?
B: Continuarmos.
A: Como assim?
B: Continuamos, repara… repara como continuamos.
A: Não percebo.
B: O que quero dizer é que… temos a memória, temos uma vaga memória de termos começado, mas é só isso.
A: Mas, então, como é que temos a certeza, quer dizer… como é que podemos ter a certeza que continuamos?
B: Ainda aqui estamos, certo?
A: Pelos vistos.
B: Exacto. Pelos vistos.
(Pausa)
A: Mas então porque é que às vezes parámos?
B: Parámos? Isso vem de parar?
A: Deparar com o quê?
B: O quê?
A: Shhhh…
B: Shhh…? O que é isso? Isso é uma palavra?
A: Repara nas reticências…
(Silêncio)
B: Uma pausa é um silêncio?
A: Não.
B: Então?
A: A pausa e o silêncio podem assemelhar-se.
Mas são diferentes.
B: Qual é a diferença?
A: O tempo. A diferença tem sempre a ver com o tempo.
B: E qual é a diferença?
A: Uma pausa tem três segundos. Re—pá-ra.
B: (1,2,3)
(Pausa)
B: E um silêncio? Quanto tempo tem um silêncio?
A: Repara de novo: (1, 2, 3, 4, 5, …)
B: Não percebi…
A: Com calma, repara: (1,2,3,4,5,…)
B: (1,2,3,4,5,…)
A e B: (1,2,3,4,5,…)
E, entretanto, abre-se a porta.
Algumas pessoas começam a entrar.
Tratam de se cumprimentar.
Falam. Sorriem.
Cumprem a vã cortesia de chegar.
Estáticas, “Sem título” (A) e “Sem título” (B) continuam.
Sem título, entre aspas e parêntesis.
Continuam bem antes de começar.